FANTASMAS (ou a gênese desse blog)

O Medeiros nunca me respondeu quando eu perguntei quem era ele.

Medeiros ou Astolfo, agora tanto faz, mas em outras épocas o homem de paletó azul marinho e gravata marrom não saía da minha cabeça, e eu tentava loucamente responder a essa pergunta.

Para mim era um burocrata, desses de repartição mal-iluminada e cheirando a suor de ônibus lotado com cigarro, isso ainda existe? Ninguém fuma mais...

Mas no fim engavetei o Astolfo ou Medeiros antes mesmo da concepção, sem dedicar-lhe sequer a primeira linha. O homem ficou apenas no rascunho, traços de lápis crayon no papel vegetal, foi-se.

E no entanto a semana avançou, impiedosa.

A folha em branco do computador às vésperas do deadline me recorda que eu devia ter agarrado o Astolfo ou Medeiros para tirar alguma história, umazinha sequer. E se eu contasse um caso antigo e dissesse que é novo?

Nessas horas me vêm à cabeça os passos curtos e compenetrados de um certo cronista que entra diariamente pela porta da redação, e sai pouco depois tendo deitado na folha em branco dois ou três galalaus de parágrafo que o editor espaça e titula.

Como diabos ele faz isto, é um enigma para mim.

Nada mais libertador que deitar um Astolfo ou Medeiros inteiros no branco de uma página, e beber uma cerveja aliviada no happy hour.

Certa vez, consegui ressucitar uma personagem nascida há coisa de quinze anos, e isto me deixou feliz. Eu já não aguentava mais aquelas mãos pequenas que na história se inclinavam a buscar o maço de cigarros vermelhos, sonhava com aquilo, já.

Devo ter vivido uma milionésima parte do que sentiu o matemático John Nash ao finalmente encontrar um meio de conviver com os fantasmas de sua esquizofrenia.

A coisa parece ter piorado depois que inventaram estes dispositivos ultrapráticos de armazenamento de informação – pendrives, minidiscs e afins. Agora, multiplicam-se fantasmas arquivados em parágrafos de arquivo Word que nunca formarão um conjunto, como um braço sem cotovelo.

É a reedição de outra encrenca que surgiu há mais tempo, com aqueles mini-gravadores de voz, e graças a Deus, aparentemente, desapareceu.

Mas escritor que era escritor portava um, para o caso de surgir uma idéia em hora inapropriada.

Hoje, revejo velhos “mapas mentais” e me pergunto se eram arremedo de crônica, conto ou apenas efeito do álcool.

Tudo não passa de traço disforme e sem graça, Astolfos e Medeiros incompletos e de gestos inconclusos, como a menina que por quinze anos ficou parada entre o encosto da cadeira e o maço de cigarros vermelho, ainda por cima em uma posição incômoda, doída.

Pensando bem, acho que o cronista que vejo diariamente caminha compenetrado na redação para desviar do olhar dos fantasmas que se lhe acercam cada vez que ele se senta ao monitor.

Que pelo menos os fantasmas dele sejam mais agradáveis que os meus.

Astolfo ou Medeiros, burocrata de repartição pública mal-iluminada e cheirando a cigarro, veja lá se isso é gente para se aturar por muito tempo.

Setembro de 2006