REENCONTRO

08/08/2006

A mala, vazia sobre o armário, era como uma coroa pela conquista de um sonho de consumo.

Uma casa.

Roupas, livros, CDs e badulaques devidamente acomodados em prateleiras e gavetas, lancei ao computador um olhar de recaída por um caso antigo, meio saudoso, meio lascivo, que bom éramos quando estávamos juntos, vamos repetir aqueles tempos?

E como uma velha amiga, aceitou-me de volta o laptop. Naveguei por textos antigos como quem se revira em lençóis de cheiro conhecido, e dedilhei no teclado revivendo a insubstituível sensação de experimentar formas e texturas familiares.

Ora essa, fazia dois meses. Dois meses que eu não escrevia uma crônica no fiel Toshiba que me acompanha por essas bandas, bem entendido. O Toshiba que passava praticamente todos os dias e todas as horas ligado em épocas de deadlines acadêmicos ou profissionais.

Nos últimos tempos, a falta de espaço e o incômodo de escrever num apartamento que mal me cabia me haviam levado a aventurar-me com outras máquinas de ocasião. Quando muito, usava o Toshiba para baixar um email, respondia apenas às mensagens essenciais.

O grosso da atividade tecnológica era no trabalho, ou na biblioteca pública, nos computadores rigorosamente impessoais monitorados por competentes equipes de help-desk. Quem pode escrever com tamanha assepsia?

O velho Toshiba está doente. Falta-lhe fôlego. Se lhe imponho demasiado esforço, desliga e reinicia sozinho. De vez em quando tarda alguns minutos para se recuperar. É preciso chamar o técnico.

Ainda assim, gosto de escrever nele. Dedilho alguma crônica qualquer nota apenas para ouvir novamente o suave tamborilar do teclado, a resistência gentil das letras, a-s-d..., dobrando-se ao toque dos dedos.

Há um ponto gravado em relevo nas teclas F4 e F8, e um traço discreto sob o J e o F, recursos de navegação para o usuário cego.

Passo sobre eles a ponta dos dedos, como se reconhecesse antigas cicatrizes e verrugas da velha amiga colorida. A charmosa celulite da moça que, afinal de contas, já não é mais a mesma, e nem poderia, graças a deus, pois piano a piano já se vão anos juntos na estrada.

A amizade continua colorida.

O Toshiba pode não ser a amiga de peitos de almofada, nem o dedilhar dos teclados, o sono bom entre lençóis de cheiro conhecido.

Mas tudo está lá: a estrada e os anos. As teclas levemente gastas pelo uso, polidas no centro como os pés de nosso Senhor nas igrejas de peregrino. E o dedilhar confortável, como os sapatinhos de cristal nos pés de Cinderela.

Às vezes, viver é desenterrar tesouros escondidos bem debaixo de nossos narizes.