BRÓCOLIS (1996)

1996

Observo, distraída, os brócolis que fazem piruetas na água borbulhante, viram e reviram mas ainda não estão cozidos como eu gostaria, aliás, nunca ficam bons como nos restaurantes, verdinhos, consistentes. Minha mãe há muito tempo me diz pra comprar alguma coisa parecida com uma panela de cozimento a vapor, disse o nome mas agora não me lembro, sempre que ela fala me vem à cabeça uma sauna, botar os vegetais dentro de uma sauna conserva o sabor e os nutrientes, ela me explicava mas eu não entendia, nunca fui boa em negócio de cozinha. Mantenho erguida a tampa da panela, espiando a água esverdeada que ferve e umedece meu rosto, pelo menos aquece sem desidratar a pele, relaxa, combate nariz entupido, santo remédio vapor de água.

- Ô, Fernanda, fecha esse negócio daí, mas que coisa! Parece uma boba que nunca viu um brócoli! Tá me ouvindo? Fernandiiiinha? Iu-hu?

- Pára, Gi! Tô vendo aqui os brócolis se divertindo, dá prá dar um tempo?

- Eeeeu, hein? - ficou me olhando com uma sobrancelha mais erguida que a outra e um sorriso irônico meio penso - excusez-moi, querida, não sabia que você ia ficar tão aborrecida!

- Não é isso, Gi, é que parece uma festa esses brócolis dançando, piscina de águas termais, hidromassagem...

- Hidromassagem, meu amor? Que luxo! Nem eu nunca entrei numa piscina de hidromassagem.

- Nunca, Gi?

- Nunca - ela me responde e abocanha um pedaço do cachorro quente, come com os olhos fechados, de prazer ou de sono? Toma um gole de água pra ajudar a engolir a comida e me dirige sua pupila extraordinariamente dilatada, a Gi tem olhos bem verdes e grandes, mais bonitos ainda quando ela ressalta com a maquiagem.

- Cada mania você tem, Fernanda! Idéia mais esquisita, comer brócoli com queijo a essa hora, Deus me livre! Eu tanto faz, qualquer coisa pra forrar o estômago antes de dormir tá bom - recosta os cotovelos na mesa, as mãos segurando as bochechas - E ainda mais ficar aí viajando na panela, onde já se viu!

Desiste de argumentar, cruza os braços sobre a superfície de mármore e deita a cabeça sobre eles, parece uma garotinha ninando.

- Já acabou, Gi?

Ela faz que sim com a cabeça, sem abrir os olhos. Recolho seu prato coberto de migalhas de pão, ela acorda - “pode deixar aí, amanhã a empregada lava” - mas ainda assim deixo a louça na pia.

- Pra facilitar, né?

Ela dá com os ombros, tanto faz, agora está ocupada em observar o cesto de frutas à sua frente.

- Aaaai, Nanda...! - choraminga fazendo biquinho, ronronando - tô apaixonada!

- Mas já, Gi?

- Não brinca, Nanda, eu não sou que nem você que só quer saber de ficar trocando de parceiro, um perigo isso hoje em dia.

- Eu, Gi?!?

- É. Ou então fica conversando aquelas suas conversas, “papo-cabeça”, poesia, artes, Brasil.

- Ai, ai... - rio de sua expressão desamparada, não se conforma.

- Não ri, Nanda. Não ri, que é verdade. Eu sou diferente, sabe como é que é? Quero um homem que seja romântico, que me proteja, que me dê carinho...

- Mas, Gi. Você nem conhece ele direito!

- Conheço, sim, sei até o telefone. O nome dele é Ricardo, mora com os pais e faz administração, o telefone dele é 813-4343. Satisfeita? Ai, Ricardinho...

- “Olá, eu sou Gisele Fernandes, solteira, dezenove anos, acredito no amor. Você por acaso se chama príncipe encantado?” - imito o seu tom de voz e ela finge que não gosta, faz muxoxo mas sei que no fundo nem se importa.

Volto a meus brócolis, vão perder a cor mas não ficam no ponto. Como sempre. Brancos e despedaçados, se quebram todinhos na hora de comer, é preciso sair colhendo os frangalhos com o garfo pra não desperdiçar comida.

- Sabe o que mais me chama atenção nele, Nanda? Aquele sorriso, nossa!

Dá um gritinho agudo - ai! que fofo! - e se treme todinha, dá até arrepio pensar de um gato daqueles chegando pertinho de mim, falando baixinho no ouvido, hum...

- Se ele não me quiser eu me mato!

- Se mata, Gi?!?

- É. Se ele não me quiser eu me mato.

- Se eu fosse me matar pelo primeiro homem que aparecesse já ia estar morta há muito tempo, só me aparece cana...

- Primeiro homem não, meu amor, alto lá! O de-fi-ni-ti-vo. Você não viu o jeitão dele pra mim? Aposto que se eu quisesse a gente teria feito uma farra hoje. Aliás, me admira você não perceber mais essas coisas, querida, isso é que dá ficar trancafiada no quarto escrevendo essas suas poesias, não é isso que você escreve?

- Contos, Gi, contos.

- Bom. Contos, que seja. Esses aí que você vive dizendo que são a sua vida. Pois então? A partir de hoje o Ricardinho é minha vida, ponto final.

Rio de sua franqueza, uma gracinha a Gi. Fica lá se estressando pelo amor da vida dela e eu vigiando meus brócolis, cruz credo, nunca vi um brócoli demorar tanto pra ficar cozido. Nem fazem mais festa, muito quente a água, me olham com cara de suplício, está ardendo mas não tiro eles daí, quero que fiquem bem cozidinhos.

- Podem se debater nas paredes da panela, meus queridos, nesse mundo cão o que vale é a lei do mais forte!

- Que é que você falou, Nanda?

- Hum...?

- Você. Dizendo aí que os brócolis estão morrendo, alguma coisa desse tipo.

- Ah, os brócolis, claro! Já pensou ser um brócoli, Gi?

- Meu Deus, Nanda, que idéia!

- Pois eu já fui.

Quando digo essas coisas sei que deixo a Gi furibunda de intrigada, imagino a cara de anta com que ela deve estar me olhando agora mas não dou atenção, rio por dentro, delicioso.

- Um brócoli. Morria assim, agonizando que nem esse aí, bem devagarinho, sofria o que podia e o que não podia.

Ela fica desconfiada por um tempo, é isso aí que você gosta de escrever, meu amor?

- Sério, Gi, agora de verdade. Um brócoli eu nunca fui, mas se não fossem meus contos era bem capaz de eu já ter me matado.

- Credo, Nanda, você hoje está com cada uma!

Rio do seu comentário, mas bem que é verdade, li em algum lugar que os escritores têm mais tendência a se tornar paranóicos que os poetas, fiquei pensativa nesse dia, tão bom ser livre como um poeta! Duro é fazer parte dessa cambada de maníaco, tudo alcoólatra, angustiado... preso na geometria da prosa e ainda tendo que fazer lirismo.

Nessa época me lembro eu andava meio desnorteada, vivia mesmo era pelos cantos, em casa uma bagunça, parece que fiquei impressionada com essa história, tomei uns birinaites, não deu outra. Chorava, esperneava, meus pais divorciando, minhas notas despencando, namorado, tudo ao mesmo tempo, eu tremia, tremia, liguei o computador e a ampulhetinha fazia cambalhota, virava de ponta cabeça e nada do editor de textos, naquela hora pensei de cair ali mesmo e nunca mais levantar.

Deus do Céu, quanto sofrimento, de lá pra cá prometi a mim mesma não falar nesse assunto! Quando comecei a escrever errava tudo que era palavra, uma baita saudade de mim, e eu nem tinha morrido ainda nem tinha ido embora pra lugar nenhum, continuava ali do meu lado tentando segurar minha mão, o caos. Escrevi umas dez páginas conversando com a morte, era tão serena que chegava a tentar, larga essa vida e vem pra onde o teu espírito vai poder ficar em paz, ela me dizia e eu chorava, só sabia cair no desespero, e minhas amigas, meu namorado, como é que ficam, eu perguntava e ela não me respondia, me jogava mais um sorriso celeste, cândido mas álgido demais, tinha um hálito fúnebre, a morte.

No final ela me levava, era melhor que ficar nessa droga de vida, só mesmo assim pra agüentar o tranco, eu pensei, mas quase que eu ia de verdade, acordei no outro dia ao lado da cama e os livros no chão, a porta do guarda-roupas quebrada, minhas pernas e meus braços cheios de hematomas e a tela do computador estampando minha sina maldita, tudo branco em princípio e depois as letrinhas tomando seus lugares nas frases, enfim, uma babel. Meu namorado quando leu disse apaga esse negócio senão você se mata, de preferência esquece completamente que esse tipo de lembrança não vale a pena, então eu prometi que ia apagar e rasgar uma cópia que eu tinha e ele acreditou mas eu preferi guardar, desculpa meu amor, gosto mais disso que da vida, rasgo a mim mas não rasgo um conto, nem pensar.

A espuma desce pela panela - chuá! - apaga o fogo, puxa vida! onde estou com a cabeça que não percebo a água subindo e transbordando! Fico aqui pensando na morte da bezerra e esqueço da vida, diabo! Tinha uma personagem que também passava o tempo todo assim, desligadona, dá licença meu amor mas agora eu tô em off, nem sei mais se a personagem era desligada por minha causa ou se eu é que fiquei por causa dela, parece brincadeira mas é verdade, moro em minhas personagens, qualquer dia viro texto definitivamente e aí já viu a farra que vai ser.

Muito mais fácil viver dentro de um conto, personagem é completa mas imperfeita que nem gente, basta deformar um pouquinho que tudo fica macio. O problema é quando a gente é obrigada a escutar a conversa desse pessoal que não percebeu que há muito tempo ficou pra trás, tá vendo aqueles risquinhos pretos empoeirados lá longe, eu pergunto à minha personagem e ela fica muda. Ali é a minha casa, eu digo e ela não comenta, problema em casa é melhor não dar pitaco. Caminhamos eu e ela, maravilha, perspectiva é esse caminho aberto, ensolarado, você tem idéia do que está acontecendo comigo, antes você era tão sensível, me vem à cabeça a pergunta dominical, e logo respondo em voz alta e você, querida, tem idéia do quanto eu mudei? Dou as mãos à minha personagem e prossigo, por ora prefiro esquecer essa gente que me exige respostas sem fazer perguntas, admito que não entendo você porque faz tempo meu mundo é outro, meu amor, mas também não pense que você me conhece. Na sua cabeça sou rebelde, puta, lésbica, torta do jeito que você não queria que eu fosse, mas se esse é o preço da perspectiva estou disposta a pagá-lo, e ficamos assim fazendo de conta, amor demais.

Acendo uma outra boca do fogão, mas eu não tinha mesmo prometido a mim não falar mais nesse assunto? Escuto o ressonar da Gi cochilando em cima da mesa, devo ter de novo esquecido do mundo pensando minhas bobagens costumeiras. Sento-me ao seu lado e acaricio suas mechinhas loiras tão macias, Gi? Ela me responde com um leve suspiro seguido de um gemidinho fraco.

- Gatinha?

Abre os olhos a meia-altura com dificuldade, sorri meio embriagada.

- Você tava falando de teatro, Nanda?

Retribuo-lhe o sorriso, respondo que não, não estava falando de teatro, se bem que escrever também é dissimular, viver a vida dos outros, agora vamos dormir que já são quase cinco e meia da manhã.

- Ah! Pensei que tinha escutado você dizer que... que...

Apóio seu braço em meu ombro, oriento seus passos pela sua cintura. Seguimos lado a lado, juntas, até o quarto no fim do corredor.

- E seu brócoli - ela me pergunta com os olhos fechados - você não vai mais comer seu brócoli?

Digo-lhe que não se preocupe, dos meus brócolis cuido eu. Cubro-a tomando o cuidado para não deixar-lhe os pés de fora, tem frio nos pés como eu nunca vi. Volto à cozinha para conferir os brócolis que fazem piruetas na água borbulhante, viram e reviram mas mesmo agora não estão cozidos como eu gostaria. Minha mãe há muito tempo me diz pra comprar alguma coisa parecida com uma panela de cozimento a vapor, disse o nome mas agora não me lembro, sempre que ela fala me vem à cabeça uma sauna, botar os vegetais dentro de uma sauna conserva o sabor e os nutrientes, ela me explicava mas eu não entendia, nunca fui boa em negócio de cozinha.