JÁ GANHARAM?

06/06/2006

O leitor me perdoe a falta de originalidade, mas tem assunto que o cronista não pode deixar de tratar. Está ali, sob as barbas da gente – mesmo que, no caso das minhas, o tal assunto não medisse sequer metro e meio de altura.

Pois se aquela coisinha tinha mais de seis anos, não chegava a oito. E ainda assim, ao ver-me comprando uma garrafa de cachaça brasileira na mercearia da esquina, quis saber de onde eu era.

– Sou do Brasil, menininha – respondi. Ao que seus olhinhos brilharam:

– Ah! Vocês é que vão ganhar a Copa do Mundo?

Devo ter permanecido uns segundos babando por aquele anjinho de olhinhos verdes e cachinhos amarelos, porque ela me desmanchava com seu sorriso dentuço, de dentes de leite. Do outro lado do balcão, o vendedor hindu, para agradar o cliente (que sempre tem razão), assentia com a cabeça.

Mas a modéstia apenas me permitiu dizer qualquer coisa como ora ora, menininha, ganhar uma Copa do Mundo não é moleza, mesmo para o Brasil. Mas estamos no páreo, entendeu?

Ela sorriu e disse que sim, entendia, thank you, sir, e desapareceu correndo como sempre fazem as crianças, entrou por algum beco ou rua paralela e encerrou nossa conversa tão rápida e espontaneamente como começou.

Em outros tempos, um diálogo desses seria impensável aqui na terra da rainha. Ainda que a Inglaterra não tenha vencido uma só Copa do Mundo em quarenta anos – a única vez que isso aconteceu foi em 1966, em casa – os ingleses nunca haviam descido do pedestal, donos da bola que se sentiam pelo fato de o futebol ter nascido por estas bandas.

Ronaldinho, o menino de ouro, parece que botou as coisas no seu devido lugar quando, no mundial de 2002, encobriu o goleiro Seaman, pobre homem, com um toque de inspirações divinas, como lhe é peculiar. Foi, aliás, numa matéria sobre o gaúcho, publicada na revista do The Observer e republicada ao redor do mundo, que o jornalista e escritor John Carlin, um britânico apaixonado por futebol, definiu: “os ingleses inventaram o futebol, mas os brasileiros o aperfeiçoaram; eles encontraram o jogo um tijolo – e o transformaram em mármore”.

Assim, pois, é que em toda parte aonde se vá bandeiras verde-amarelas ladeiam as alvirrubras com a cruz de S. Jorge. Cada bar, cada pub, cada loja de televisores exibe a sua. Quem bota os pés fora do Brasil sabe que o futebol é uma bendita ponte de integração cultural onde quer que se esteja. Da China ao Canadá, da África do Sul à Ucrânia, da Colômbia ao Marrocos, basta mencionar os nomes dos nossos diplomatas mais conhecidos, a saber, Ronaldo, Ronaldinho, Pelé, Kaká, Roberto Carlos, Rivaldo, etc., para ser bem acolhido em outras paragens.

Isto é diferente. Isto é fanatismo. É um bombardeio. Normalmente, qualquer evento esportivo é precedido, em algum lugar, pelo clima de ‘Já ganhou’. Mas clima de ‘Já ganharam’, confesso, nunca tinha visto.

Confortavelmente abancada no balcão de um pub, diante do duo anglo-brasileiro de bandeiras, uma amiga argentina não se conforma: “a ‘brasilmania’ só encontra paralelo na ‘argentinofobia’”, ela protesta. E troca a cerveja inglesa por vinho chileno.

Entende-se a rivalidade, aqui sempre escoltada pelos recuerdos da Guerra das Malvinas. Maradona, com sua mano de dios, só piorou as coisas marcando de mão no 2-1 que tirou a Inglaterra das quartas de final da Copa de 1986. Faz vinte anos mas parece que foi ontem, como mostrou a tensão que presenciei outro dia enquanto jogava uma pelada num parque no norte de Londres. De pirraça, um amigo argentino parou o jogo com a mão e apontou a bola para o gol. O lado inglês subiu nas tamancas: não, mate, isto aqui não se faz nem de brincadeira, estamos entendidos?

“Argentinofobia!”, denuncia minha amiga, que quase morreu do coração ao saltar do metrô em Berlim e dar de cara com um imenso cartaz de Ronaldinho estampado num prédio.

Mas a ‘brasilmania’ também tem lá sua contraparte, mais ou menos delineada no guia tipo “Entenda a Copa do Mundo” em que o The Independent explica para os leitores o quem é quem do Mundial. Respondendo à pergunta “o que seria considerado um sucesso [para o Brasil] nesta Copa do Mundo”, o jornal assevera: “qualquer coisa que não seja vencer e dar um show seria uma catástrofe”.

Então pronto, fica aqui a minha dica para pauteiros e repórteres. Todos queremos dar a notícia do hexa, mas de certa forma ela já está no script. Notícia mesmo é se o Brasil perder o torneio. Bandeiras brasileiras desaparecerão de sacadas ao redor do mundo? Apostadores chorarão seus pounds empatados tão certeiramente na bolsa futebolística? Os meninos do dream team perceberão uma queda nos seus rendimentos publicitários? A onda Brasil passará e afetará as receitas de exportação das sandálias Havaianas e da cachaça Sagatiba?

Sinceramente, prefiro a não-notícia neste caso. Cumpra-se o script e estou satisfeito. Quando meu lado jornalístico, advogado do diabo, me assalta, tomo um gole da cerveja no balcão e olho as bandeirinhas brasileiras atrás do barman. E repito pra mim mesmo, como se repetisse para minha amiga cética, a sabedoria popular que corre pelas redações: no news is good news, darling querida, não-notícias são boas notícias.


* Esta crônica faz parte da série “Obviedades londrinas”, em que o autor, por falta de criatividade, abordará temas ambientados na capital inglesa que já foram tratados por meio mundo.