MEU BODINHO DE ESTIMAÇÃO

04/06/2005

“Reco, reco, reco...”

Ouço com alegria a navalha do seu Odilo, o barbeiro, cutucar os cantos do meu rosto. Trabalha como um artesão, delineia formas, tesourinha nas pontas, verifica a simetria.

“Reco, reco, reco...”
Mais uns ajustes e posso dizer que tenho um cavanhaque.

– Adeus, velhos tempos! – comemoro.

Tempos sofridos, quando eu mal podia dizer que tinha pentelhos, no máximo uma penugem fina e rala que mal dava para a virilha. Ah, o velho espelho encardido no banheiro, que revelava minhas espinhas e me escondia os pêlos do peito! Sonhava com tufos fartos se destacando ao redor dos mamilos, até o dia em que reparei no tórax de meu pai e me conformei, teria no máximo umas plumas escassas que iam descolorir e minguar na velhice.

Agora estou vingado, ostento meu cavanhaque que dá para o gasto apesar de uma falha aqui outra acolá.

– Ficou charmoso – avalia seu Odilo.

– Ficou ridículo! – zanga uma amiga, lúcida. Arreganho os dentes mas ela nem se intimida, repete o desaforo, tira essa barbicha ridícula!

Barbicha não senhora, mais respeito com o cavanhaque.

Meu parceiro me deixou com cara de macho centro-americano, hombre para ninguém botar defeito, à noite vou a um bar de salsa desses que estão na moda e abordo as donzelas, me dá el gusto de una danza?

Na salsa parece que meu cavanhaque está em casa, fazemos um intervalo para uns mojitos e lasco um olhar safado pra ela, coço a barbicha, oye que estás guapísima esta noche.

“Cafa” no último.

Óbvio ao extremo.

Pouco me importa, funciona, digo a uma amiga, que ri, e esta agora, cavanhaque tem funcionalidade? Pois sim, arregalo os olhos, muitas. Ainda não descobri quais, mas meus amigos abarbichados garantem que um cavanhaque pode ser polifuncional, multifuncional e até – veja você – transfuncional, foi bem essa a definição de um douto professor de história adepto do rosto apeludado, muito fluente nos termos acadêmicos em voga.

Pouco familiarizado, no entanto, com os fatos históricos e etimológicos ligados ao seu enfeita-queixo. Pois desconhecia que o cavanhaque foi assim batizado em referência ao primeiro-ministro francês Louis-Eugène Cavaignac, ainda nos tempos da Segunda República.

Curiosamente, o primeiro-ministro não gostava de pêlos ornares no rosto, quem difundiu esse costume foi seu adversário, o imperador Luís Napoleão Bonaparte, cujo cavanhaque, de tão espesso, lhe fazia parecer um bode. Os franceses, aliás, utilizam até hoje a palavra bouc – literalmente, bode – para falar de cavanhaque.

Sapeco essa demonstração de cultura inútil para um amigo que trabalha no Itamaraty (e juro por Deus que não é trocadilho, a conversa se deu diante de um bode preparado com esmero num restaurante do Recife), e ele me rebate, também estudou as transformações da palavra:

– No Itamaraty, cavanhaque virou outra coisa – ele caçoa. – Sabe como é, diplomata velho é bicho sofisticado, sensível...

Blasfêmia. Mania besta de duvidar de quem usa cavanhaque.

Pois alguns séculos atrás os estimados “bodes” da alta sociedade brasileira mereciam até xícaras de porcelana com protetor para bigode, comprove-se em qualquer museu colonial. Cavanhaque era coisa séria, bigodinho de leite, descuido de criança.

Meu cavanhaque levarei a sério, e se bobear posso até aumentá-lo, deixar crescer uma vistosa barba. Como fez meu amigo Lira Neto, que usava uma bem negra e comportada até aparecer na política o senhor Antônio Palocci que, de perfil, era assim uma cópia sua. Pobre, lhe pilharam tanto que deixou os pêlos formarem uma barba completa, e de quebra levemente grisalha, visual de escritor.

Ou senão faço como aquele francês que usava o bigode do cavanhaque ao estilo do seu conterrâneo Asterix, as pontas longas se enrolando no meio da bochecha. Meu pai, numa inexplicável ausência de bom senso, talvez à vontade pelo vinho que o anfitrião lhe servia, investiu-se do espírito brasileiro e soltou, sem pensar:

– Onde é que você arrumou este espana-bocetas, rapaz?

E o francês riu amarelo, aposto que depois disso o vinho foi servido a ritmo mais compassado. Não se sabe se por decisão dele próprio ou de sua esposa, que também corou de leve, o fato é que o homem, no dia seguinte, reapareceu de cara limpa. E nunca mais usou cavanhaque.