O DIABO NA PELE DE DOUDOU NDIAYE

14/11/2005
modificado em 13/07/2006


E o mundo, paranóico com o diabo da gripe das aves. A gripe aviária chegando no velho continente e já há quem diga que estamos diante de uma nova pandemia. Mesmo aqui na Inglaterra, onde os instintos carnívoros normalmente prevalecem sobre as elucubrações da imprensa, a pane fez algum efeito.

“Ó tempora, ó mores”, cada tempo com suas paranóias, digo sempre. Checo o canto do monitor e vejo Doudou Ndiaye me saudar em francês:

“Salut!”

Sei, sei. Ctrl+Alt+Del, Doudou, Ctrl+Alt+Del:

“Finalizar tarefa”.

Nesse momento, estou a ponto de levar meu antivírus à loucura. Mensagens do software anti-espiões me avisam que um programa qualquer tentou acessar a Internet e teve o acesso negado.

Creia-me, o vírus da gripe aviária nem chega perto disso.

Doudou desaparece da minha vista por algum tempo, mas sei que voltará. Há dois dias, travamos uma lide de cavalheiros.

Não costumo abrir mensagens desconhecidas que chegam pelo Outlook, mas por acaso o cursor pousou sobre o cabeçalho da que chegou com seu nome. Apressei-me em apagá-la, mas...

“Oh, well, too little too late”, sentenciaria aquele inglesinho safado que me vendeu este computador. Ou muito mais pomposamente, “Après nous, le déluge”, depois de nós o dilúvio, como ensinou Madame de Pompadour, quando viu o exército francês ser massacrado pelo prussiano em 1757.

Pois os exércitos inimigos de hoje são esses insetinhos xeretas chamados cavalos de tróia. Aparentemente indefesos, mas, numa época em que a informação viaja à velocidade de um foguete, essas pragas eletrônicas se multiplicam à oitava, décima potência no primeiro segundo de infecção. Se é fácil imaginar um arquivo, uma pasta, um computador imobilizado num ataque cibernético, por que não uma rede, uma empresa, um banco, uma cidade inteira?

Com este tipo de inimigo há de lutar sem olhar-lhe nos olhos. Como Perseu desafiando Medusa, a mitológica mortal filha de deuses, mãos de bronze e cabelos de serpentes, cujo sangue tinha a propriedade de matar e ressuscitar os seres humanos, e cujo olhar transformaria em pedra aqueles que o captassem diretamente.

Doudou manda-me emails que tenho de apagar sem examinar-lhes o conteúdo, mensagens instantâneas que tenho de finalizar sem clicar sobre elas. Uma batalha à distância, apesar de suas palavras cordiais: fala-me em francês quando estou num site da França, em inglês quando navego por páginas inglesas.

Cheguei à conclusão de que – pelo menos desta vez – Doudou não é uma pessoa. Apenas um vírus poliglota (eles estão na moda hoje em dia) que se propaga pelo MSN Messenger e, neste momento, está brincando com minha paciência.

No início, admito, tive medo. Reforcei meu velho Norton, veterano de guerra, com um software anti-spy de última geração. Bloqueei Doudou no Outlook Express e cheguei até a avisar, por telefone, um amigo que seu email servira de inspiração para Doudou criar seu próprio codinome.

Em algum momento, quando observava todas as ferramentas de monitoramento de meu computador, confesso que me senti um general da CIA observando as bases soviéticas durante a crise dos mísseis.

Ao final, por orientação de um fórum virtual sobre este tipo de vírus, finalmente entreguei meu Texas. Uma versão Beta do MSN Messenger havia aberto uma brecha por onde meu amigo poliglota resvalara. Desinstalei o programa e passei a usar uma tosca versão online.

Entreguei um braço para ficar com o tronco, que seja – alguma integridade ainda me resta. Se não posso fazer como Perseu, que colocou a cabeça inerte de Medusa em exibição sobre o escudo de Atena, pelo menos tenho a prerrogativa de contar a história. Uma arma tão poderosa quanto a espada de Hermes.

Doudou Ndiaye, quem sabe o espere agora em algum site italiano. Quando me alcance uma mensagem no estilo “Ciao, ragazzo!”, travarei com meu inimigo uma batalha tão épica quanto a dos clássicos, só que num ciberespaço impalpável como o de Guerra nas Estrelas.

Mas talvez eu dispense as personagens heróicas de Lucky Skywalker e Darth Wader, gringas, e adapte a velha batalha dos dois lados da força para uma versão menos glamourosa, latino-americana, como o título daquele filme venezuelano Florentino e o Diabo. Ou melhor ainda, cearense como minhas origens, inspirada num clássico da literatura de cordel que até hoje se vê pendurado nas feiras do Cariri, A Peleja de Riachão com o Diabo no Sertão.