O ENVIADO (1995)

"Nem a lua", pensou o enviado, na tarde em que o tempo parou; e teve a nítida impressão de que chegara enfim a hora do seu julgamento. A praia estava deserta, e ele permanecia prostrado na areia, cego pela luz alaranjada do sol. Tudo parado, estático. Morto. Um silêncio que parecia observá-lo. A tarde estava bela, mas ninguém tinha vindo ver o pôr-do-sol. "Nem a lua", repetiu vagarosamente, e percebeu com impotência que todos os olhares agora se voltavam para ele, escondidos atrás da arrogância dos arranha-céus. O mar estava quieto, calado, e mesmo o sol, que ainda não o abandonara, caminhava lento e sereno. Juntou com os dedos magros um punhado de areia, tentou apertá-lo, mas o movimento lhe saiu demasiadamente fraco, e ele continuou subjugado, as pálpebras semicerradas, constatando com desgosto que agora estava intimamente vazio. Afinal de contas, em que ele tinha se transformado? De que lhe adiantava agora o objetivo, se depois de conquistá-lo caíra numa profunda rotina? Não era ele quem usava proclamar os sonhos? Mas... e então? Era a isso que aspirava? O que conseguira cumprindo sua missão?!?

- A morte?!?

Repetiu com lentidão a frase, quase que silenciosamente: "A morte?", mas percebeu que essa idéia já não o assustava. Na verdade, a morte em si nunca o tinha assustado, agora então ela era mais que bem-vinda. No que viria depois dela, sinceramente ele nunca tinha tido tempo para pensar. "Primeiro a missão, depois a morte".

- A obrigação, depois o lazer.

Sorriu, concluindo que de castigo a morte convertera-se a prêmio. Uma espécie de promoção. Chegou mesmo a esboçar um início de riso, que promoção mais absurda, quer dizer então que o estar no mundo era pior que a morte? Se a morte significava a absolvição, isso quer dizer que a vida era o tribunal?

- Não, não pode... - mas não continuou, sem mais ânimo. Não era hora de ponderar sobre a vida e a morte.

Fechou os olhos amarelados, achou melhor continuar simplesmente deitado na areia da praia. Mas agora sentia-se alegre, a bem dizer. E que coisa mais bonita, a areia da praia! Durante toda a sua vida ela estivera ali, a seus pés, e ele nunca lhe tivera olhos. Contemplava as ondas que se curvavam a ele como se lhe quisessem fazer um culto, as mesmas que deslizavam sobre a orla lambendo-lhe os calcanhares. Por que a maré não podia ser dele? E o sol? Por que o sol insistia em esconder-se atrás do horizonte? Por que não ficava mais um pouco, tão bonita a luz do sol.

- Sol! Sol! - exclamou ainda, na intenção de chamá-lo, mas logo desistiu. Maluquice, essa história de chamar o sol.

A essa altura a lua despontava no céu, coroada por uma porção de estrelinhas. Enfim, aparecera. Branca, brilhante, sorrindo-lhe uma cumplicidade satisfeita, comprovando-lhe que ele, na verdade, não tinha desvendado coisa nenhuma da vida. Se estava vazio, pois que abrisse o próprio peito, e se permitisse encher de sol, de lua, de marés cheias.

Escutou um som longínquo de pássaro, depois outro, depois outro; pareceu-lhe ouvir uma conversa que se passava distante; um ruído de motor; uma risada tímida. Pôde distingüir na escuridão uma luz vacilante, acompanhada de outra luz, depois outra, em pouco tempo a cidade se iluminava, se mexia, ele podia ouvir as palpitações de seus movimentos, andando, falando, namorando. Parecia-lhe que tudo voltara ao normal.
Inclinou-se para a frente, apoiando-se nos cotovelos, um esforço gigantesco para se levantar. Tropegou até a beira da praia, levando as mãos à barriga - como doía! - e ali deitou-se para aguardar ser chamado, e na manhã seguinte já não haveria vestígios de seu corpo.