O OCORRIDO (1994)

1994

A avó entrou na sala embrulhada no seu xale preto, passeou rapidamente por entre os presentes e sentou-se na cadeira que lhe estava reservada. Trazia nas mãos o eterno leque, o velho leque branco de estampas verdes, e pôs-se a abanar o pescoço já suado. Apesar de tudo não chorava, nem tinha raiva. Aceitava, apenas. Apenas o velho rosto de sempre. Enrugado, caído - expressão alguma. Os óculos negros encobrindo a íris negra da velha.

Não foi difícil para ela reconhecer o neto. Bonito, o danado. Loiro, forte, os olhos verdes agora cerrados, os lábios repuxados como num sorriso. Quantas vezes o vira assim elegante? Bem penteado, barbeado, engomado num terno ainda reluzente.

– Comportado...

Disse isto e o som saiu mudo, longínquo. Mas bem que ela preferia o neto desleixado, os cabelos sempre jogados, sua maneira peculiar de falar, as calças jeans apertadas ao corpo, aquela mania dele de aprender piano com a avó. E como era indisciplinado, pra que ficar na escala de dó se nós temos também os sustenidos, ele dizia, mania de impaciência, lá vinha o riso maroto.

Uma lágrima umedeceu-lhe as pálpebras, ela agora chorava um choro de avó. Triste, arrastado – experiente, e por que não dizer mesmo equilibrado? Só ela sabia o motivo do ocorrido, era como se o trancafiasse. Revelá-lo seria criar uma confusão dos diabos, problema de família, ih! minha filha, coisa complicada é problema de família! Apalpou os bolsos do vestido, escolheu dentro da cigarreira um toco pela metade - o médico lhe contra-indicara o fumo e o álcool - e levou-o à boca. Fixou os olhos na parede amarelada do compartimento, num ponto para onde as lembranças convergiam. Às vezes a fumaça do cigarro passava à sua frente - o médico lhe contra-indicara o fumo e o álcool - e ia-se acomodar no teto ao lado do lustre - o médico lhe contra-indicara... - ora, o médico que fosse para os diabos!

Nem mais um minuto de hipocrisia, agora chega! Desesperado, isso mesmo! Nem bem abrira a porta e o menino já havia irrompido pelo apartamento da avó, aos prantos – horrível! Umas manchas escuras ao redor dos olhos desencontrados, o rosto em vermelho vivo, aquele hálito fedido de aguardente. Bradando, gesticulando, vindo de lá pra cá o tempo todo. Bastou deixá-lo sozinho um instantezinho de nada, ia buscar-lhe uma xícara de chá, imagine se alguém pode se acalmar naquele estado sem um chá... e escutar aquela pancada seca lá embaixo, no térreo. Viera correndo, meu Deus, que bobagem o neto tinha feito desta vez, nem um minuto e ele ainda estava vomitando aquela nonsense. Estancara à porta da sala, hesitante em confirmar o ocorrido.

Deixara calmamente o pratinho com a fatia de bolo em cima da mesa, sentara-se à beira do sofá. O ocorrido? Que viessem dizer a ela. E, aliás, que avisassem também os pais do moço, aqueles dois monstros. Monstros monstros monstros, isso sim é que eles eram. Irresponsáveis. Inconseqüentes. Não tinham idéia do que representavam para o menino? Não sabiam da dimensão da sua hipocrisia? Daquele casamento que até fedia de tão podre. Pareciam duas crianças brigando, em casa uma baixaria, só a guerra declarada faltava mesmo naquela espelunca, e sabe Deus se um dia não chegavam às vias de fato. Queriam se matar, se matassem no inferno, grande favor fariam às crianças. Queriam explodir, explodissem, bolas, mas poupassem pelo menos... um menino, ainda!

– Psicopat...! – proferiu em voz alta, mas logo interrompeu a frase. Também não era o caso de perder o controle. Não tinha mais idade pra isso. Acomodou-se na desconfortável cadeira – numa hora dessas, também, quem há de se importar, pensou consigo.

Juntou sobre as pernas as duas mãos grandes – ah, nisso o neto tinha puxado a ela! Dedos grossos, fortes – firmes, contudo leves. Nisto, mãos de pianista. Capazes de, brincando, subir e descer as oitavas de um piano, e roubar-lhe desde o toque mais meigo, um sonho, uma fuga, passos rápidos de uma bailarina clássica, que encanto! - até o bramido mais irado das notas graves. Tinha lá suas virtudes artísticas, o danado do menino. Passava o dia encaramujado no quarto, escutando aquelas músicas horríveis de gente nova, mas quando vinha, vinha com o sorriso que formava a covinha – uma só – na ponta de um dos lábios. Tomava as mãos brancas da avó, mãos frágeis, mãos de velha, ela pensava. Até se vêem as veias aí sob a pele alva, mas ele dizia a senhora ainda vai viver muito mais que todo mundo nessa família, sorria. Então pegava o violão, no seu tempo era feio tocar violão, a senhora já imaginou que desperdício? E cantava embalando umas melodias chorosas, de uns tempos pra cá tivera a idéia de tocar violão. Depois ficavam a conversar assuntos de antigamente, um moleque, vejam só, mas que facilidade para conversar coisas de antigamente. E a velha fazia de conta que ainda era moça no casarão pintado de amarelo, tetos altos, os azulejos lapidados e pintados com adornos brancos e azuis, velho gosta de ser criança. Como quando passava o dia espreitando a varanda que dava frente para a rua de paralelepípedos meio toscos, um canteirinho separando as duas vias de mão que iam dar na pracinha. E o povo indo e vindo, de bicicleta ou a pé, “boas tarde, sinhá”, os matutos tiravam o chapéu e curvavam-se em respeito, “quando é que seu doutô vem por estas bandas de cá?” E ela respondia, por esses dias, seu Zé, por esses dias, seu João, seu Raimundo, toda aquela gente que vinha saber das notícias dela, uma princesinha de quê – metro de altura? Vez ou outra vinha alguém lá de dentro dar notícia que tinha cocada nas tábuas, era só esperar esfriar, cocada quente dá dor de barriga, avisavam mas ela nem dava conta. Abocanhava aquele pedaço de céu tão branquinho, tá certo, não era um céu azul, mas ela tinha certeza de que pelo menos nuvem era doce daquele jeito. Quando a tarde anoitecesse lá ia ela brincar de boca-de-forno e bandeirinha na praça mal-iluminada, da chinela pra cá é o campo dos vivos, pra lá é o morto, corria descalça, ria até ficar cansada. A iluminação ficando mais fraca, fraquinha, ela apertava os olhos pra ver, a lâmpada perdia força, ela apertava ainda mais os dois risquinhos no rosto pálido. Tudo embaçado, as lâmpadas deixando a paisagem meio fosca, escurecida, diluindo-se na realidade amorfa, liquefeita, uma lágrima?

Passou as costas das mãos pela face gélida, sem saber das lembranças se o tempo ou o choro as tinham desfigurado, seus olhos deixavam ver alguma coisa?

Um gemido fatigado invadiu a sala, chamou a atenção dos presentes. A mãe. Agora se lamenta, choramingando agarrada àquele mau-caráter do marido. Igualzinho a ela, os cínicos. Ficam aí repetindo "meu filhinho, meu filhinho", como se isso fosse trazer de volta o menino. Deviam ter pensado nisso antes, agora queriam o quê? Agora o ocorrido está consumado, resta apenas desejar que os irmãos não tenham a mesma sorte. O neto que leve com ele o motivo do ocorrido, poupe dos irmãos mais essa desgraça.

Outra vez a velha ajeitou-se no vestido, tirou dos bolsos um rosário, mas de súbito um alvoroço iniciou-se entre o grupo. Um grito desesperado precipitou-se pelo ambiente, olha a balbúrdia, ave Maria mãe de Deus, o Senhor é convosco! Dessa vez tiveram que amparar a mãe pelos braços, a Santa Cruz. O padre benzeu o corpo.

Era hora de partir o cortejo.