SE MEUS SAPATOS FALASSEM

13/06/2005

Não há perigo maior, para um cronista, do que sua própria casa. O aconchego do lar, a tranqüilidade da cama, a tentação de passar o dia de pernas pra cima.

Até os cronistas merecem descanso de vez em quando, admito. Mas como encontrar boas estórias sem bater pernas pela rua, observar os ruídos e trejeitos do mundo?

O domingo, por exemplo, é a morte da crônica. Não importa se a casa do cronista vive cheia ou vazia, se a família está por perto ou a milhares de quilômetros de distância, é difícil ser original quando tudo o que se faz é estender-se no sofá com uma lata de cerveja e assistir ao futebol.

As boas estórias, o cronista sabe, estão lá fora.

“L”, “á”, “f”, “o”, “r”, “a”, digito, de pijamas em frente ao computador, enquanto lanço um olhar de rabo-de-olho para a rua. Mas tem dias que simplesmente não dá vontade de sair de casa.

É domingo e faz um sol incrivelmente feliz na cidade, em outros tempos eu imediatamente calçaria minhas chinelas de dedo e sairia pelo bairro a observar as pessoas.

Em vez disso, lamento e me conformo, já fui melhor nisso.

Quando eu era criança, por exemplo, se alguém me perguntava o que queria ser quando crescesse, eu respondia de bate-pronto, queria ser andarilho.

Anos depois, adolescente, eu devorava as aventuras do Grande Mentecapto, aquele personagem de Fernando Sabino que depois virou filme com Diogo Vilela, me influenciou muito, o mentecapto. Meio herói, meio idiota, gastando sola pelo mundo.

Eu botava uma muda de roupa na mochila e carregava a garupa da bicicleta, saía peregrinando pela casa dos amigos e só voltava dias depois, dormia na casa de um e de outro até me cansar e ligar para minha mãe, estou na casa de fulano ou de sicrano, pode vir me buscar?

Pois é, sempre fui um andarilho meio fajuto.

Eu era do tipo que matava aula só para ficar andando pelos arredores da escola, se bem que meus passos nunca me levavam muito longe, as pernas trabalhavam mas o exercício, no fim das contas, era dos olhos.

O cartão de crédito e o bilhete aéreo até que puseram jeito de seriedade na coisa. E o walkman, bendito seja o walkman, só Deus sabe quantas horas de música escutei, em volume máximo, caminhando pelas redondezas da velha Aldeota, em Fortaleza, até minha casa, na Água Fria. Ou a bordo de algum ônibus semileito, numa BR esburacada entre Natal e o Rio de Janeiro, cruzando as fazendas de pasto pela estrada de ferro que vai de Corumbá até a ponta do Brasil. Mas no fim aqueles velhos vagões sacolejavam e lembravam os punhos das redes estendidas na varanda do rio Jaguaribe, redes que servem ao repouso do guerreiro.

Sim, porque bater as asinhas por aí dá uma saudade dos diabos. Aliás, minha teoria é a de que a saudade vem sempre, nem faz diferença a que distância se está de casa. Mesmo que se esteja apenas observando os passarinhos no parque do Ibirapuera, ou sentado num botequim observando as meninas passarem. Até em casa, de pijamas, num domingo preguiçoso, coisa louca é cabeça de cronista.

É que nessas horas, o que está longe é o olhar. Pousado sobre a linha do horizonte de algum Cabo da Boa Esperança.

Mas o celular está tocando e eu retorno de supetão à velha e boa sala de casa, corro para atendê-lo, nada mais mundano que um celular tocando. Do outro lado da linha, uma amiga me convida para um almoço japonês. Estou de folga e aceito o convite.

Chegamos ao restaurante e sentamos no tatame, descalços, como manda a tradição. Meu olhar percorre sem compromisso as opções do menu. Já não sou andarilho, nem mentecapto, nem saudosista, nem solitário. Apenas um sujeito sentado de pernas cruzadas, a conversar trivialidades numa tarde de domingo.

Os sapatos, deixei-os na entrada do restaurante. Uma senhorita colocou-os lado a lado na soleira da porta, virados para a saída. Não é que vão sair, sozinhos, a caminhar por aí. Mas nunca se sabe, na dúvida é sempre bom tê-los a postos para quando se precise.