WELCOME DAY

02/11/2005

Carlo, o italiano, caminha a passos rápidos.

Andiamo, andiamo! Quando atravessar a rua, olhe para os dois lados!

Sapatos gastos, carrega pelo menos dez quilos na mochila, os músculos das batatas da perna sugerindo alguns quilômetros diários de caminhada.

De repente Carlo pára num cruzamento, vamos esperar o resto do grupo que ficou para trás. Dez ou doze pessoas se reúnem à sua volta, ele assume ar professoral:

– Essa é uma lanchonete bem barata. A comida é razoável, não é boa, mas o preço é bom – ensina. – Daquele lado há outro café, esse realmente barato. Cheap stuff, if you know what I mean. Mas a comida também não é lá essas coisas. Se você quiser, ou melhor, precisar comer a um custo realmente econômico, pode vir aqui. Mas sabe como é, a comida é realmente ruim. Realmente ruim. Barata. Andiamo! Andiamo!

Caminho atrás de Carlo como bom aluno, bienvenuto a Londra, ele diz. Foi escolhido meu tutor para uma volta no quarteirão no meu induction day, uma espécie de ritual de boas vindas preparado pela minha Universidade para seus alunos recém-chegados.

Enquanto caminhamos, observo os prédios da city londrina, pelo menos me sai de graça. Por trás destas janelas envidraçadas trabalha a parte de cima dessa sociedade, uma espécie rara neste ecossistema, que os cientistas chamam “ingleses”. Pensam nos milhões de libras que virão no bônus de fim de ano, enquanto Carlo e eu nos ocupamos de coisas mais prosaicas, eu de ser pobre, ele, de me ensinar lições básicas de como sobreviver sendo pobre na cidade mais cara da Europa.

– Metrô em Londres? Imagina! – instruiu-me uma amiga nos meus primeiros dias. – Uma passagem de ônibus custa a metade. Se você economizar uma libra por dia, ao fim de duas semanas pode sair para comer num chinês barato! – e sorriu, como a me dizer, plim!

Saio, pois, a exercitar meu novo palavreado: cheap thai, cheap chinese, cheap beer, cheap stuff. “Cheap”, ou barato, é uma das palavras mais pronunciadas por aqui.

Meio-dia, na rede de supermercados Tesco, é hora do rush na seção de sanduíches frios. A Tescolândia, como ironizou um jornal londrino, é uma cadeia especializada em produtos “genéricos” – de pratos prontos a vinhos, material de limpeza a seguros para animais domésticos. Uma em cada oito libras gastas no varejo inglês vai para as caixas registradoras da Tesco.

Finalmente entendi por que os londrinos, gente em geral refinada, vivem comendo sanduíches pelo meio da rua, como seus irmãos anglo-saxônicos da América, gordos, metidos em moletons e tênis e com seus McDonalds e Coca-Colas de 1 litro.

Não é a mesma coisa. Londres é uma cidade tão sofisticada quanto inacessível.

Os ingleses não criaram o vinho, nem o chá, nem a seda, nem a cerâmica, nem as especiarias – inventaram o sistema financeiro, e viraram os principais compradores do que há de mais precioso na humanidade. Alguém me corrigirá, viraram compradores e exploradores; mas nesse ponto não foram diferentes dos portugueses ou espanhóis, povos que ninguém arrisca dizer onde estariam sem a ajuda da União Européia. O diferencial, insisto, foi o sistema financeiro.

Aqui, aliás, parece que o capitalismo é ainda mais opulento que nos Estados Unidos, os novos ricaços do mundo. Basta passar os olhos nos títulos das revistas na banca da estação de trem: “Comprando no exterior: Que tal passar sua aposentadoria no Marrocos?”; “Aziendas italianas: A nova onda dos britânicos?”; “Guia imobiliário: Minha primeira casa na Provence francesa”.

Que esperar de um povo que paga pelo menos R$ 700 mil em qualquer sala-e-quarto?

No domingo, o conservador The Times estampa na capa de seu caderno de Finanças: “Por que se aposentar com apenas £ 1 milhão (R$ 5 milhões)? – Dicas para triplicar sua aposentadoria”.

Sem ilusões, no entanto. Estrangeiros por aqui são bem-acolhidos conquanto se conformem com as migalhas da refeição principal. Ocupam-se do trabalho (nem sempre sujo, para ser justo) nos horários mais ingratos – o dia para os ingleses termina cedo, e a jornada semanal não inclui sábado nem domingo; os impostos recolhidos sobre as horas extras de um empregado registrado são tão altos que é melhor contratar mão-de-obra free-lance e barata para cobrir o turno.

À parte essas sutis, mas significativas diferenças, somos todos iguais na mesma pobreza. Viajo no ônibus ao lado do senhor de paletó e gravata que me parece bastante distinto. Muito supimpa, a diretora economiza no transporte pedalando até a escola. Na fila da cafeteria, o simpático casal de velhinhos conta as moedas antes de decidir se toma seu chá no salão ou leva-o embrulhado para comer em algum banco de praça.

Mais ou menos como havíamos feito eu e minha amiga, agora debruçados sobre duas xícaras de café latte e duas metades de um croissant. Conversávamos sobre a serventia de se economizar cada centavo em Londres.

De repente, inicia-se um burburinho nos corredores. O funcionário da caixa registradora espicha o olhar para fora do balcão. A sirene de incêndio toca incessantemente, irritantemente. Pânico, alguém se exalta. A garçonete pede calma, calma, senhores, deixem as coisas sobre a mesa e saiam devagar, por favor.

Do lado de fora do bar, já seguros, um grupo de curiosos ficamos de esguelha, nessas horas sempre tem os abelhudos para atrapalhar a passagem. Sem nos notar, um funcionário deixa o banheiro com o cigarro aceso que causara a confusão.

Nada mais que alarme falso.

Ora essa, pelo menos fica a história para contar, diz minha amiga. Mas sabe qual é o bom de tudo isso, ela sorri e me cutuca.

Claro, já estou um londrino, respondo. Meus olhos brilham enquanto as mãos no bolso, protegendo-se do frio, fazem tilintar as moedas de bronze que serviriam para pagar a conta. Todo o tempo do corre-corre fiz questão de me assegurar que estavam bem guardadinhas, digo orgulhoso.

Welcome to London, lembro-me do mestre Carlo e de suas batatas de andarilho. Gastando sapatos para economizar na condução.

Quatro libras menos pobre, meto-me pela noite fria volta à casa. Nada, absolutamente mais nada aqui lembra o Brasil – por ironia, só a existência deste jeitinho londrino. Que não é um jeitinho malandro, nem malicioso, nem aproveitador, nem coisa nenhuma nesse gênero. Que, como no Brasil, é só um recurso, mais um recurso, da turma do andar de baixo para viver neste mundo, apesar dele.


* Esta crônica faz parte da série “Obviedades londrinas”, em que o autor, por falta de criatividade, abordará temas de Londres que já foram tratados por meio mundo.