As verdes colinas de África v.1

17.4.05

Jurei conhecer a melodia que me acariciou os ouvidos uma certa manhã em que acordei sonolento, e botei para escutar o primeiro CD que alcancei dentro da gaveta.

“É no fundo do mato/ É no fundo do meu coração/ Que toca forte o tambor/ Que é sagrado”, cantava uma voz calma, acompanhada de um violão dedilhado e uma percussão discreta.

Meu amigo Lira Neto descreveria esse tipo de música como de ouvir e levitar, eu definitivamente senti mais leves as pernas e enchi os pulmões de um ar alegre, lancei pela janela um olhar de fim de semana.

O estilo me soava como Eugênio Leandro, Zeca Baleiro ou Chico César, tinha o sabor daquelas canções do litoral nordestino que eu cresci escutando. Mas minha familiaridade foi derretendo da segunda para a terceira estrofe, à medida que deixava de entender o que dizia aquela voz macia. Eu perdia os versos e confundia as palavras, não, aquilo não era português.

Voltei à capa do CD e descobri, não era Zeca Baleiro nem Chico César, o cantor se chamava Manecas Costa e falava num idioma crioulo da Guiné Bissau.

– Nossa! Parece com as coisas do Brasil – exclamei.

E na mesma hora me veio à cabeça a estranheza que um amigo russo, fluente em português, causou a um grupo de brasileiros que o levávamos para ver um desfile de bandinhas de carnaval. A determinada altura do evento, em meio a uma marchinha e outra, ele soltou:

– Lindo! Parece com as coisas da Guiné Bissau!

Mas nós fizemos cara feia, que absurdo, que subdesenvolvimento! Nós, semelhantes à Guiné Bissau?

Quando visitei a cidade de Sevilha, na Andaluzia espanhola, uma amiga me levou para conhecer as mesquitas e a arquitetura de traços árabes, herança dos mouros que ocuparam o sul da Espanha na Idade Média. Entre um comentário e outro, lembrei que tudo aquilo guardava forte semelhança com o que eu havia visto anos atrás, no norte da África.

– Mas você está na Espanha, não na África! – disse minha amiga, ríspida.

Calei-me, ressabiado, de certa maneira todos nós somos ou viemos da África, a terra mãe, mas afinal de contas, pensei, para que brigar, é tão comum negar as origens africanas quando elas são suas.

Antes de ouvir pela primeira vez o canto suave da cabo-verdiana Cesária Évora, em minha própria língua, eu já havia aprendido, na França, uns versos em árabe de "Ya Rayah", um hit do argelino Rachid Taha que fez sucesso na Europa nos anos 90.

Eu estava então na faculdade de jornalismo, havia devorado em poucos dias uma volumosa reportagem feita por norte-americanos sobre o conflito em Ruanda e Uganda – mas de Angola eu apenas sabia da morena de Chico Buarque, que levava o chocalho na canela.

Eu procurava conhecer uma África que falava a língua dos outros.

É glamouroso festejar uma África distante, aquela dos safáris que Hemingway descreve em "As verdes colinas de África", que eu desvendei em uma só tarde na escola norte-americana onde estudei literatura e história. Ou a de Jim Morrison, para onde dizem que fugiu o vocalista e líder do The Doors, segundo a lenda dos fãs que ainda querem mantê-lo vivo.

Mas que pena, tive de conhecer a música de Manecas Costa – que posso sentir e compreender, que é quase a música de um patrício – em um CD importado lançado por uma gravadora de gringos. “Deep in the Forest/ Deep in my heart/ The drums play strong/ It is sacred”, diz a tradução da música, que encontro na Internet. Até quando precisarei de legendas para ler em meu próprio idioma, me pergunto?

Em algum lugar nas minhas prateleiras guardo uma revista portuguesa que me fala sobre a ilha de Bazaruto, em Moçambique. Às vezes passo bons minutos viajando por aquela praia de azul tranqüilizante, comovedor até, pelas jangadinhas atracadas na areia de búzios, conchas e corais ao pôr-do-sol.

É a única referência que guardo daquele país, além da expressão feliz de uma jovem que estudava na mesma faculdade que eu, em São Paulo. Nunca fui seu amigo nem posso dizer se solteira ou se casada, apenas que tinha um sorriso encantador e o nome, Açucena, poético como as expressões nativas que ela às vezes usava em classe. Para não mencionar os corações partidos que ela deixou no Brasil antes de retornar à sua terra natal.

Só a ignorância e o preconceito explicam a rejeição que nós, brasileiros, conservamos em relação à África, principalmente a lusófona. Como aquele lugar-comum, aqui no Sudeste, de chamar de preguiçosos os baianos, não por acaso os que mais refletem a influência negra na sociedade brasileira.

Sobre a Bahia, aliás, versa o único poema que tenho decorado de Carlos Drummond de Andrade: “É preciso fazer um poema sobre a Bahia/ Mas eu nunca fui lá”.

O mesmo se pode dizer da África. É preciso conhecê-la. Mas não pelo olhar dos gringos, não pelo filtro de uma outra cultura. Muito menos pela ótica turva do preconceito, da ignorância.

Quando ainda hoje folheio aquela revista sobre Bazaruto, em Moçambique, sinto-me em casa, imagino as sensações, as belezas, que ficaram do outro lado do Atlântico, na terra mãe de todos os povos. Que gringo nenhum será capaz de perceber. Que somente nós, bons filhos, frutos daquele calor, oriundos daquele ventre e daquele chão, seríamos capaz de decifrar.

Mais: As verdes colinas de África v.2