AS VERDES COLINAS DE ÁFRICA

25.5.06

Jurei conhecer a melodia que me afagou os ouvidos certa manhã em que acordei sonolento e botei para escutar o primeiro CD que alcancei dentro da gaveta.

Do som escorregou uma melodia leve, dessas que ondulam e levitam como tapete voador. “É no fundo do mato/ É no fundo do meu coração/ Que toca forte o tambor/ Que é sagrado”, cantava uma voz que fazia referências ao mar da minha infância. Violão dedilhado e percussão discreta, aquela sensação de voz macia cantada ao pé do ouvido e travesseiro branco.

Mas minha familiaridade foi derretendo da segunda para a terceira estrofe, à medida que eu deixava de entender o que dizia aquela voz. Eu pedia os versos e confundia as palavras, sono? Esfreguei os olhos e apurei os ouvidos, mas que diabos mesmo cantava a voz?

Foi então que me dei conta: não, aquilo não era português. Havia posto para escutar um CD que comprara poucos dias antes e ainda não tivera tempo de desfrutar. Nada de mar, não o meu, pelo menos. Quem cantava era o músico Manecas Costa, em seu idioma crioulo da Guiné Bissau.

- Nossa! Parece com as coisas do Brasil! – exclamei.

E na mesma hora me veio à cabeça a estranheza que um amigo russo, fluente em português, causou a um grupo de brasileiros que o levávamos para ver um desfile de carnaval. A determinada altura do evento, ele soltou:

- Lindo! Parece com as coisas da Guiné Bissau!

E nós fizemos cara feia: que absurdo, nós, parecidos com a Guiné Bissau?

A própria vida, a danada, me passou na cara meu atestado de hipocrisia alguns anos mais tarde, quando uma amiga espanhola que mora na Andaluzia me levou para visitar as belezas de sua região. Entre mesquitas e alcázares, comentei-lhe que a arquitetura de traços árabes, herança dos mouros que ocuparam o sul da Espanha na Idade Média, recordava-me os cenários do norte da África. E ela, ríspida, ao melhor estilo espanhol:

- Ora, mas você não está na África! Está na Espanha!

E eu, ressabiado, calei-me para evitar controvérsias. De certa maneira eu e ela somos ou viemos da África, a terra mãe de todos, pensei, mas afinal de contas existe algo mais comum que negar as origens africanas quando elas são suas?

Curiosamente, cultivar a África dos outros não pega mal. Ou que lógica explicará que de tanto escutar o argelino Rachid Taha eu tenha até aprendido versos em árabes de sua música Ya Rayah, muitos anos antes de ser apresentado à música da cabo-verdiana Cesária Évora, que ouço como a meu próprio folclore? Sei lá, Rachid Taha faz sucesso na França.

Mais ou menos nesta época, pegava bem discutir nas rodinhas de bares reportagens de jornais estadunidenses que davam conta do conflito em Ruanda e Uganda – mas de Angola acho que a maioria só tinha ouvido falar da morena de Chico Buarque que levava o chocalho na canela.

Em algum lugar nas minhas prateleiras guardo uma revista portuguesa que me fala da ilha de Bazaruto, em Moçambique. Veio parar entre meus livros muitos anos depois de eu ter devorado As verdes colinas de África, de Hemingway, o relato de um safári majestosamente escrito por um aficionado em safáris.

Hemingway é um clássico, e indico seu livro. Mas a esta altura prefiro deixá-lo com sua África “exótica” e passar bons minutos viajando imaginariamente pela ilha de Bazaruto, traçando rastros efêmeros na areia daquela praia de azul tranqüilizante, quase comovedora com suas jangadas atracadas ao pôr do sol.

É a única referência que guardo de Moçambique, além da expressão feliz de uma jovem que estudava na mesma faculdade que eu. Não a conheci muito bem e dela não sei mais, apenas que tinha um sorriso encantador e o nome, Açucena, poético como as expressões do seu português que vez por outra ela usava em classe.

Poesia que esbarra como uma queda de cavalo na tradução das letras de Manecas Costa para o público gringo: “Deep in the forest/ Deep in my heart/ The drums play strong/ It is sacred”, informa o encarte do CD. Sinto-me um estúpido de precisar recorrer ao inglês para entender quem de mim está mais próximo.

Mas afinal, festejar uma África que fala a língua dos outros não é uma maneira de mantê-la à distância? Fica mais fácil ser preconceituoso e hipócrita, como aliás é meio Brasil em relação à Bahia, não por acaso o estado mais negro do país.

Sobre a Bahia versa um micro-poema de Carlos Drummond Andrade, um dos poucos que sei de cor: “É preciso fazer um poema sobre a Bahia/ Mas eu nunca fui lá”.

Pois é. Pelo menos Drummond queria fazer um poema.


Mais: As verdes colinas de África v.1