Infância

INFÂNCIA NO TRAIRI

No cenário modorrento da minha memória, me lembro do Trairi. O sol quente na estrada de piçarra que levava às Fleixeiras, a poeira vermelha levantando a cada carro que passava e ia empestando a boca da meninada com aquela nuvem quente e arenosa, irrespirável. Até que dali a pouco aparecia a praia, quando a estrada fazia um T e conduzia, à esquerda, pro Mundaú, à direita, sei lá pra onde, nos meus tempos de menino eu nunca me preocupei em saber pra onde levava a estrada à direita, só sabia da lagoa do Mundaú e das dunas que a gente atravessava em pleno sol a pino, o pé escaldando na areia quase branca, tão quente o caminho que a gente buscava um verdinho qualquer de grama pra aliviar a temperatura.

Do tempo quente da minha infância, ainda me assalta o Trairi. A volta da praia com o corpo ainda salgado, dava a impressão de horas até a próxima bica, na casa antiga de pé direito estelar que exibia, de cima a baixo (essa era a minha impressão) fantasmas em preto e branco da tradicional família trairiense. A macarronada com frango e suco de caju ou graviola, seguida de tapioca de coco com bastante manteiga e café preto e doce de interior. E, de sobremesa, dindin de castanha, toddy ou coco.

O corredor puído dava pra porta da entrada sempre aberta, o compadrio ia entrando para um café e um tiquim de conversa fiada e a criançada ia saindo pra jogar amarelinha, bandeira, remanim-remanim ou homem-pega-mulher na praça de frente, o busto de vovô acompanhando a inocência remexida com lascívia que exalava da espontaneidade das crianças, ele imobilizado na sua expressão de fundador da cidade, a gente com pensamentos de meninos citadinos espiando por baixo das saias das matutinhas.

Era uma época de inocência...

E eu com medo de passar na frente da igreja à meia-noite, ou pegar o caminho fúnebre do cemitério depois de caído o sol...

Nenhuma impressão supera a memória do jardim atrás da casa do Trairi, com seu cheiro de siriguela, goiaba, ata e genipapo. Até hoje me arrepio quando de súbito percebo no ar a fragrância de alguma pitomba que um sertanejo rompeu com seus dentes a quilômetros de distância. De lá pra cá, aprendi a gostar e reconhecer o cheiro da mulher que amo. O resto, minha paleta olfativa, é só aquele buquê de frutas tropicais, tutti-frutti misturado com chiclete babalú, pirocóptero e fogos de artifício – porque a vida no Trairi existia apenas em época de festa, principalmente a Semana Santa, quando a turma ia roubar o Judas alheio e caçar nas lagoas e no matagal da região, a gente suando de excitação no meio do carrapicho com medo de cachorro e de olho na lua cheia, ouvido atento ao uivo do lobisomem.

No Trairi tinha lobisomem... e mula sem cabeça.... e alma penada... e marmota, o pesadelo de todo sertanejo, de todo cavaleiro, quem a tinha visto no meio da escuridão, em pleno caminho deserto, nunca mais voltava a bater bem da cabeça. O Trairi era um transe, um êxtase, um gozo sadomasoquista. Debaixo da igreja, o povo dizia que existia uma traíra gigante, a mesma que batizara a cidade, monstrengo assombroso que crescia quando a gente dizia “Traíra, Trairí, cresce!” – e a gente gostava mesmo era de repetir o clamor da traíra gigante, até que ela atingisse quilômetros e, incomodada e tomada pela ira, se levantasse e destruísse a cidade que lhe rendia homenagem, trazendo-a ao chão vermelho de piçarra e nele desaparecendo sem deixar sinal de perturbação, apenas a visão infernal da modorra esfumaçada, cortada pelo taciturno, preguiçoso, esquálido rio Trairi. Delgado e inofensivo como um sertanejo faminto.

Minha infância foi no Trairi e o Trairi, se mudou, foi só no posto da Telebrás, que desapareceu e levou junto os cabinhos pretos e vermelhos que a Maria conectava aqui e ali para gerar, dali a alguns minutos, uma ligação pra Fortaleza.

E no Trairi nem tinha música, a música foi invenção de minha adolescência, Caetano cantando “o céu de um azul celeste celestial” e Raphael Rabello dedilhando “Modinha” e “Luiza” no meu quarto hermético e apenumbrado de garoto-problema. O Trairi, não. O Trairi era sal e suor e no máximo a melodia matuta da Lurdinha contado o de-um-até-dez antes de sair atrás dos meninos. Ela correndo para me pegar e eu fugindo mas doido pelo toque da mão da Lurdinha, a palma suja agarrava meu braço e eu imaginava o rosto da Graziela, que tinha ficado em Fortaleza, de todo modo a Graziela estava sempre comigo, escondida nos recantos da minha carteira emborrachada, na forma de um papelzinho de bala Ice Kiss.

Graziela, Ricci e Marisa, meus três amores de infância. Nem imagino onde tenha ido parar Ricci e muito menos Marisa, a Graziela eu reencontrei nos meus treze anos e o resto é uma lembrança congelada no tempo, imutável e impalpável, apática como o papel da balinha Ice Kiss. Amor platônico mas real, tão sólido que comestível.

Afora isso, minha meninice não fora tempo de amores, muito menos no Trairi, eu que de verdade ficava era ruborizado com a sabedoria das meninas que só faltavam fagocitar aquele menino loirinho e sardento, sobrancelhas tão brancas que pareciam nem ser, magrinho em camisas listradas e calções invariavelmente rasgados, esse era eu medroso das brincadeiras de abacaxi-pera-maçã que as matutas mais espertinhas gostavam de propor. À distância eu assistia enquanto alguém mais assanhadinho pedia jambo ou romã ou o diabo que se pedisse, eu pra mim me contentava com os saltos de minha própria imaginação no escuro tátil do gato-mia... Eu já gostava da sutileza, e o abacaxi-pera-maçã era o perceptível, o aparente, o visível, o à mostra; o gato-mia era o silencio, a respiração, o tenso...

De mãos suadas e imundas e coração a sair pela boca passei minha meninice, transeunte e aprisionada no Trairi. Até o dia em que voltei à paisagem modorrenta da igreja e da pracinha, e lavei as mãos antes do almoço.

Desde então, como um louco, tento reconstituir o DNA de cada uma daquelas partículas de sujeira e passado que escorriam pelo ralo depois de rodopiar pela louça branca da pia sanitária. E refazer o caminho da minha meninice, das coisas simples da vida, de meu templo e minha urna funerária, minha Pasárgada.

São Paulo, 29/01/2004.



Mais: Infância v.2 (Brasileiro) e Semana Santa (Infância v.3)