A RIMA INDISPENSÁVEL

Quando eu era adolescente e, portanto, romântico, acreditava que para escrever era preciso exercitar a solidão. Culpa do amigo Lira Neto, que também era um moleque mas me avisava, com ar de reticências:

– Somente com um bocado de solidão se faz um artista de bom tamanho...

E eu, que naquela época nem cerveja bebia, passava as noites na base do café expresso, ficava maravilhado: – Então a dor é uma dádiva!

Eu achava que sofrer ia me revelar horizontes, “a dor é inalcançável”, escrevia.

Exercitava a parolagem e a punheta.

O primeiro fora que levei de uma menina, ou melhor, nem levei, porque era devoto da solidão poética, soquei os trapos na mochila e parti. Escolhi uma praia deserta e passei umas férias escolares devorando cada linha de Marina Colasanti e Lygia Fagundes Telles, enfiado num quartinho de pensão que se elevava sobre um rio que me enchia os olhos – fim de tarde, a maré alta, eu reescrevia, imitava descaradamente aqueles contos que havia lido de manhã, e curtia feito um velho esgotado minha dor de cotovelo de adolescente covarde. E achava que fazia literatura.

Anos depois, a garota que foi razão do meu transtorno zombou de mim:

– Achava lindo aquele menino que andava de lá para cá e nem conseguia pronunciar as palavras, por isso escrevia – ela me decifrou.

Mas quem dizia isso era um mulherão um palmo mais alta que eu – e ela estava ao meu lado como veio ao mundo, os cabelos desgrenhados, as bochechas apoiadas no meu peito e os dedos dos pés roçando a pontinha do meu calcanhar, ah!, meu passado vingado!

Eu devia achar que as palavras habitavam um mundo que não era esse, que viviam num jardim do éden onde os poetas entravam desacompanhados e caçavam, não borboletas nem passarinhos, caçavam histórias, caçavam linhas.

Meu jardim suspenso desmoronou impiedosamente quando me apaixonei de verdade, eu amava mas sofria feito um padre, que maravilha era gozar e acordar alquebrado no dia seguinte, porém vinha junto aquele martírio, trepar era um prazer pequeno-burguês.

Mulher valente, aquela, nunca mais arrumo amor teimoso que resista aos meus arroubos de imaturidade. Esperou anos até que eu resolvesse essa equação da minha adolescência.

Lancei ao chão todos os mitos que eu cultivava quando menino, toda moral, todo romantismo bocó que eleve a arte a algum ponto intangível. Não guardo saudade.

Prova de minha iconoclastia (e de minha decadência), hoje empenho a literatura em utilidades bem menos nobres, como alguns poemas assanhados que andei dedicando às meninas de pileque nos bares da Vila Madalena. Foi numa dessas noitadas que um poeta itinerante voltou ao tema da solidão, e definiu:

– Solidão é viver neste mundo vazio.

Pensei comigo, “vazio”? E que haverá de tão misterioso no teu universo solitário, poeta, que eu não encontre neste meu, tão mundano e ordinário?

– Vazios são os estômagos do Brasil – respondi.

Pão, poeta. É disso que o mundo precisa. Pão-tesão-chão-ereção.

As únicas rimas indispensáveis ainda estão nesse mundo.

12/04/2005

Mais: A rima indispensável (v.1)