Folhas secas v.1

01/05/2004

Do outro lado da linha, escuto sua voz em tom pastel.

Oi, você me diz.

Claro que uma voz não tem tom, nem ao menos cor, se tivesse a sua seria de um suave amarelo pastel. Mas como aqueles prédios antigos do centro de Roma, ou essas fortificações berberes do deserto de Marrakesh, nada de azul bebê nem rosa florzinha, quero dizer as cores profundas talhadas pelo tempo. Mostarda envelhecida, talvez?

Te acordei, você me pergunta.

Sua voz está diferente, outra textura, levemente rouca, quem sabe? O outono, você me responde. Essa virose que está dando em todo mundo, sabe?

Sei, sei.

Hoje de manhã saí para comprar pão na esquina e vi as primeiras folhas amareladas na calçada.

(Voz de outono-pastel, é isso. Sua voz teria a cor dessas folhas secas que fazem colchões debaixo das árvores no outono, mas sem estrilar sob os pés, pelo contrário, textura de espuma, de pena de ganso. Voz de rede na varanda.)

O frio parece que chegou mesmo, não? Mais um pouco e começam as programações românticas na montanha, lareira num chalezinho afastado, queimando marshmallow com varinha de madeira, um bom vinho...

Hum...

E de fundo “Les feuilles mortes”, numa versão ao vivo no Olympia de Paris, outono de 1982. Talvez você prefira a música no saxofone de Stan Getz porque te lembra Nova York; em Manhattan, “Autumn leaves” é um estouro de jazz, mas eu me apego à voz sagrada de Yves Montand, minha emoção é sempre carregada de nostalgia, você sabe disso. “Je voudrais tant que tu te souviennes...”.

Em poucas semanas estaremos novamente brancos e sem graça, eu e você, duas lagartixas pálidas, mas ora bolas, que felicidade é lagartear num domingo de outono, acordar bem cedo e saborear o silêncio, sair do quarto aquecido apenas para botar o pé na sala fria e voltar correndo para debaixo da coberta.

Tão fria minha casa no outono. Mas não naquela noite em que você veio me visitar pela primeira vez, naquele ano o outono foi quente, o inverno foi curto, tomamos uma ou duas cervejas debruçados sobre o parapeito da varanda, soprava uma brisa quase marinha e de repente eu me dei conta do quanto você era bonita.

Você achou minha casa arrumada para um rapaz solteiro, ficou saracoteando feliz da vida entre os móveis de mogno, as sandálias teco-teco-teleco – tamborilando nos tacos de madeira. Você observava as fotografias e os CD’s e eu apenas me comovia de tanta beleza, tom sobre tom, a iluminação oblíqua ressaltava os seus olhos verdes, castanhos – cor de folha seca.

Nós conversamos de amores impossíveis e palestramos sobre amizade entre homens e mulheres, existirá? Depois você foi embora, sua aparição na minha vida era inesperada e eu julguei que deveria antes definir que papel lhe cabia nela.

Da primeira vez que lhe escrevi um poema, tentei me convencer de que era apenas paixonite, coisa sem importância. Sabe aquela história do poeta ser um fingidor?

Você sabe, é claro.

Aliás, você sabe também como o amor pode vir em uns momentos inconvenientes.

É mesmo, você ri. É sempre assim.

Quanto tempo mesmo? Um ano. “Um ano...”, repito sua resposta. Do outro lado da linha, eu sei que você está sorrindo.

Curioso, meu amor me dá ganas de fazer trabalhos manuais: arrumar a casa, podar o jardim, cozinhar, escrever – sim, claro, pois tudo isto não é mais que desenhar e entalhar, marcar e entalhar.

Há um ano talhei para você um poema. E também comida japonesa, nem se viu o outono no ano passado, há exatamente um ano fazia um calor dos diabos e eu evaporava de tanto calor cada vez que eu te via, divina, tom sobre tom.

Céus, quanto tempo demorei até vencer meus próprios demônios e atravessar sua atmosfera etérea, você é tão impalpável e eu, tão ressabiado. Devo ser assim por aqueles filmes de vampiro que eu assistia tremendo de medo, meninote agarrado aos lençóis, só com os olhinhos de fora. Era um frouxo, mas fazer o quê, tinha uma verdadeira admiração pelos vampiros, já percebeu que eles nunca invadem a casa da presa? A estratégia é cercar e ser convidado, percebe?

Sim, isto você também percebe. E sorri. Vamos virar dois vampiros de tão brancos, nesse outono.

Você graceja dos meus devaneios e sabe que nem mesmo eu os levo a sério, principalmente quando mal estou desperto. Vou te deixar dormir até mais tarde, você diz. Não, espera. Fica mais um pouco.

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