FOLHAS SECAS

Do outro lado da linha, escuto sua voz em tom pastel.

Oi, você me diz.

Claro que uma voz não tem tom, nem ao menos cor, se tivesse a sua seria de um suave amarelo pastel. Como aqueles prédios antigos do centro de Roma, os castelos mouros no sul da Espanha, ou essas fortificações berberes no deserto de Marrakesh. Nada de azul bebê nem rosa florzinha, quero dizer as cores profundas talhadas pelo tempo. Mostarda, talvez?

Te acordei, você me pergunta.

Sua voz está diferente, outra textura. Levemente rouca, eu diria? O outono, você esclarece. Essa virose que está dando em todo mundo, sabe?

Sei, sei.

Hoje de manhã caminhei um pouco e vi as primeiras folhas amareladas na calçada.

(Voz de outono-pastel, é isso. Sua voz teria a cor dessas folhas secas que fazem colchões debaixo das árvores no outono, mas sem estrilar sob os pés, pelo contrário, textura de espuma, de pena de ganso. Voz de rede na varanda.)

O frio parece que chegou mesmo, não? Mais um pouco e começam as programações românticas na montanha, lareira num chalezinho afastado, queimando marshmallow com varinha de madeira, um bom vinho...

Hum...

E ao fundo tocando Les feuilles mortes, numa versão ao vivo no Olympia de Paris, outono de 1982. Talvez você prefira a música no saxofone de Stan Getz porque te lembra Nova York, em Manhattan Autumn leaves é um estouro de jazz, mas eu me apego à voz sagrada de Yves Montand, minha emoção é sempre carregada de nostalgia, você sabe disso. “Je voudrais tant que tu te souviennes...”.

Em poucas semanas estaremos novamente brancos e sem graça, eu e você, duas lagartixas pálidas, mas ora bolas, que felicidade é lagartear num domingo de outono, acordar bem cedo e saborear o silêncio, sair do quarto aquecido apenas para botar o pé na sala fria e voltar correndo para debaixo da coberta.

Tão gelada minha casa no outono, você diz. A minha também, respondo.

Mas não naquela noite em que você veio me visitar pela primeira vez, naquele ano o outono foi quente, tomamos uma ou duas cervejas debruçados sobre o parapeito da varanda e soprava uma brisa quase marinha, de repente me dei conta do quanto você era bonita. Você achou minha casa arrumada para um rapaz solteiro, ficou saracoteando feliz da vida entre os móveis de mogno, as sandálias teco-teco-teleco – tamborilando nos tacos de madeira.

Você observava as fotografias e os CD’s e eu apenas me comovia de tanta beleza, tom sobre tom, a iluminação oblíqua ressaltava os seus olhos verdes?, castanhos? – cor de folha seca.

Nós conversamos de amores impossíveis e palestramos sobre amizade entre homens e mulheres, lembra disso?

Sim, você lembra. Desculpe, o outono me deixa nostálgico.

Nada não, você diz. Eu e meu romantismo incorrigível. Minha expressão de bobo te admirando embasbacado, papa-moscas, quando fomos ao cinema pela primeira vez. Eu parecia um patinho desfilando de tanta felicidade, que cara é essa, você me perguntou. Hã? Desculpe, estava aqui com meus pensamentos. Eu só conseguia pensar que você era minha arca do tesouro.

Lá dentro as imagens faziam tela no seu rosto, era um filme sem graça recomendado pela crítica, e eu nem posso me dizer cinéfilo, sou mais das artes visuais. Gosto de passear entre esculturas e pinturas, contemplar, tecer pontes, interpretar e superinterpretar, me perder. Uma tarde inteira numa galeria ou num museu, mãos dadas e abraços pela cintura, trago você para junto de mim e sussurro, isto é uma paisagem de praia? Me parece mais um gato enrodilhado em novelo de lã. Ahn...

Quanto tempo mesmo? Um ano. “Um ano...”, saboreio sua resposta. Há um ano, o outono era mais quente, não havia tanta folha seca na calçada. Havia, sim, no aroma daquele vinho que ordenei no restaurante quando te levei para jantar, você lembra do aroma de folha seca e bosque molhado?

Inconfundível.

Você disse, estou com fome, e eu coloquei minha mão sobre a sua, tão bom alimentá-la. Eu caminharia quilômetros por aquela veredinha estreita forrada de folhas de outono e cassis caídos dos pés, lá no fim eu estenderia uma toalha, senta, meu amor, tão bom alimentá-la.

Você nem imaginava os sentimentos que despertava em mim. Eu estava nessa vereda apenas de passagem para algum outro lugar, me apaixonar estava fora dos planos. Foi por isso que me assustei quando tive vontade de te escrever o primeiro poema. Tentei me convencer de que não era de verdade, que era mania de autor incorrigível sarandeando para cima de mulher bonita, sabe aquela história do poeta ser um fingidor?

Você sabe, é claro.

Aliás, você sabe também como o amor pode vir em uns momentos inconvenientes.

É sempre assim, você concorda. Do outro lado da linha, eu sei que você está sorrindo.

Céus, quanto tempo demorei até vencer meus próprios demônios e atravessar sua atmosfera etérea, você é tão impalpável e eu, tão ressabiado. Devo ser assim por aqueles filmes de vampiro que eu assistia tremendo de medo, meninote agarrado aos lençóis, só com os olhinhos de fora. Era um frouxo, mas fazer o quê, tinha uma verdadeira admiração pelos vampiros, já percebeu que eles nunca invadem a casa da presa? A estratégia é estar ali e se fazer convidado, percebe?

Sim, isto você também percebe. E sorri. Vamos virar dois vampiros de tão brancos, nesse outono.

Em que momento mesmo você me permitiu entrar aí nesse seu mundo, eu te pergunto. E você graceja do meu devaneio, de manhã cedo, mal desperto, sou um prato cheio para o delírio.

Deve ter sido numa dessas festas em que nos cruzamos, seus olhos de folhas secas e meu ar de outono nostálgico, quando voltei para casa flertei com o sax de Stan Getz mas sapequei na seqüência uma pérola de Wynton Marsalis, Angel Eyes, mais adequada. Quando eu era estudante, dividia o apartamento com um colega que já sabia, duas horas da manhã e eu na sala, escutando Angel Eyes, só podia significar uma coisa.

Ih, está apaixonado, ele comentava. E se recolhia.

Eu permanecia ainda um bom par de horas escutando aquele trompete entristecido e olhando a cidade pela janela da sala, o frio formava bafos na superfície envidraçada, eu os enxugava com as mãos e certa vez tive a impressão de que meus dedos atravessavam a janela, mas isso pode ter sido efeito do álcool.

Não importa, pela manhã eu estaria empenhado em algum trabalho manual, arrumando a casa, limpando os CD’s, podando as plantas, escrevendo – sim, claro, pois tudo isto não é mais que desenhar e entalhar, marcar e entalhar.

Como fabricar um anelzinho de fibra de coco ou um colar de conchinhas. Aqueles retratos em xilogravura que se vendem nas feirinhas de artesanato do Nordeste. Você gostará de conhecer uma que fica a poucos metros da minha casa, ali na areia, vamos passear entre as barraquinhas e escolher uma quinquilharia para te deixar enfeitada, não estaremos mais pálidos feito lagartixas, olha o tom sobre tom finalmente voltando ao seu rosto.

Você suspira, daria tudo para estar numa praia. Me leva para conhecer sua casa em Fortaleza?

No próximo vôo, se você quiser.

Risos.

Que horas são agora, mesmo?

Cedo, vou te deixar dormir mais uma horinha. Não, espera, fica mais um pouco. Tenho que ir, jantamos na sua casa hoje? Sim, te espero mais tarde.

Você desligou o telefone e fiquei alguns segundos escutando o tu-tu-tu da linha ocupada. Esqueçamos a praia, é outono, nesta época as águas e a areia estão geladas.

Aliás, estará ligado, o aquecedor? Agorinha mesmo passou um fio de ar quase polar, terá vindo da janela ou foi um calafrio?

Um leve tremor de paixão e nervosismo, meu corpo que cai como uma folha seca no outono. Sensação igual à de acordar no meio da noite e dar com seus dedos frios, enroscados nas minhas canelas em brasa.

Leia também: Folhas Secas v.1

02/05/2004