A orquídea selvagem (v.3)

15/10/2006

Quando aquela orquídea floresceu, meu amor, novamente na sacada do meu apartamento, de frente para o skyline dos prédios na avenida Sumaré, fechei às pressas a porta de correr que levava à sala de estar. A flor selvagem, selvagem tenho certeza, despontava branquela, bocuda, canibal, despontava como se fosse atacar meus miolos, despontava.

Lá fora fazia inverno brumoso, lá fora para além da porta envidraçada de correr, um céu cinzento como a pedra de ardósia que apoiava o vaso de cerâmica, plúmbeo como aquele dia cinzento em que você me estendeu o vaso em tons pastéis e me disse, simplesmente, espere a primavera.

Esperei, amor, mas naquele ano a primavera chegou e nem me dei conta, quando o broto verde da orquídea despontou, e ainda a meia-estação clareava, eu estava ocupado em cultivar no quarto-estufa outra espécie de formosura.

Sou como uma flor de asfalto, você soprou certa vez no meu ouvido, assim no meio de alguma noite pluviométrica. De asfalto, me lembro bem, ouvi enquanto as gotas de chuva repicavam e embalavam desordeiras pelo meio-fio, caules se espraiavam e se espichavam pelos travesseiros. Ao pé da cama fincavam-se raízes, e no centro dela nos encontrávamos estampados como duas folhas verdes, duas folhas.

Tivemos, amor, tive meus dias de jardineiro, enquanto o sol da primavera lambia os lençóis brancos e se esgueirava entre as persianas para dentro do quarto, acordávamos e do outro lado do travesseiro, bem do meio do edredon, como uma sarda rosada do centro do copo leitoso da orquídea, abriam-se seus olhos castanho-claros que me viam através das suas pupilas desabrochadas, pupilas de babado, como begônias verde-castanhas.

Não sei, amor, se foi meu desajeito para as plantas, ou se porque era mesmo muito cedo para alguma coisa florescer, faltavam primaveras. Foi tudo tão rápido, no tempo de uma estação passamos de primavera a verão a inverno, pulamos o outono, saltamos os galhos do ano e quando percebi já tudo estava murcho, ao chão, murcho. Há muito jaziam pendurados na galharia meus cortadores e rastelos, os manuais de jardinagem com a descrição dos hibiscos do Jardim Botânico.

Foi talvez alguma erva daninha, uma erva daninha perdida entre meus cabelos-roseira que você sulcava como um jardineiro à procura de espinhos, numa dessas noites que tinham ao fundo Omara Portuondo cantando o amor que nasceu de uma flor, fios de água escorriam de seus peitos e umedeciam a pele ao redor dos mamilos, como uma capa de orvalho num jardim de primavera.

Ou simplesmente um bichinho, um mísero inseto, quem sabe, que acendeu seus instintos de planta carnívora, numa dessas madrugadas cinza em que a lua mais parecia uma medalha fosca, uma moeda de bronze no céu. Do centro do edredon já não me irradiava a luz daquele caledoscópio de begônias castanhas, cujo efeito óptico me enfeitaçava qual a uma criança, em vez disso saltavam presas que se agarraram às paredes do quarto-estufa e chafurdaram os lençóis até caírem cansadas aos primeiros raios do dia. Você parecia uma flor selvagem, meu amor, uma flor canibal mas ainda uma flor, isso eu sabia porque seu rosto em turbilhão era pálido e delicado como uma pétala de rosa.

Acantonado eu observava você, meu amor, e pensava no vaso de cores pastéis que a floricultura deixara em nossa porta pouco antes, o arranjo de amores-perfeitos que tive o cuidado de remover dali antes mesmo que você deixasse o quarto-estufa. Por ele vaguei o tempo que ainda


Mais: A orquídea (v.1), A orquídea (v.2) e A orquídea selvagem.