A ORQUÍDEA SELVAGEM

18/10/2006

Quando aquela orquídea floresceu, meu amor, novamente na varanda do meu apartamento, de frente para o skyline dos prédios na avenida Sumaré, fechei às pressas a porta de correr que levava à sala de estar. A flor selvagem, selvagem tenho certeza, despontava branquela, bocuda, canibal, despontava como se fosse atacar meus miolos, despontava.

Lá fora fazia inverno brumoso, lá fora para além da porta envidraçada de correr, um céu cinzento feito a pedra de ardósia que apoiava o vaso de cerâmica, como aquele dia em que você me estendeu o vaso em tons pastéis e me disse, simplesmente, espere a primavera.

Esperei, mas naquele ano a primavera chegou e nem me dei conta, amor. Quando a orquídea despontou, e ainda a meia-estação clareava, eu estava ocupado em cultivar no quarto-estufa outra espécie de formosura.

Sou como uma flor de asfalto, você soprou certa vez no meu ouvido, assim no meio de alguma noite pluviométrica. De asfalto, me lembro bem, ouvi enquanto as gotas de chuva repicavam e embalavam desordeiras pelo meio-fio, caules se espraiavam e se espichavam pelos travesseiros. Ao pé da cama fincavam-se raízes, e no centro dela nos encontrávamos estampados como duas folhas verdes, duas folhas.

Tivemos, tive meus dias de jardineiro, enquanto o sol da primavera lambia os lençóis brancos e se esgueirava para dentro do quarto. Acordávamos e bem no meio do edredon, como uma sarda rosada do copo leitoso da orquídea, abriam-se seus olhos castanho-claros que me viam através das suas pupilas desabrochadas, pupilas de babado, como begônias verde-castanhas.

Não sei, amor, se foi meu desajeito para as plantas, ou se porque era mesmo muito cedo para alguma coisa florescer, faltavam primaveras. Foi tudo tão rápido, no tempo de uma estação passamos de primavera a verão a inverno, pulamos o outono, saltamos os galhos do ano e quando percebi já tudo estava murcho, ao chão, murcho. Jaziam pendurados meus cortadores e rastelos, os manuais de jardinagem com a descrição dos hibiscos do Jardim Botânico.

Foi talvez alguma erva daninha, uma erva daninha perdida entre meus cabelos-roseira que você sulcava como um jardineiro à procura de espinhos, numa dessas noites que tinham ao fundo Omara Portuondo cantando o amor que nasceu de uma flor. Ou simplesmente um bichinho, um mísero inseto que acendeu seus instintos de planta carnívora, suas presas que saltavam e se agarravam às paredes do quarto-estufa, chafurdando os lençóis até caírem cansadas aos primeiros raios do dia.

Você parecia uma flor selvagem, eu pensava, uma flor canibal mas ainda uma flor, isso eu sabia porque seu rosto em turbilhão era pálido e delicado como uma pétala de rosa.

Era uma dessas madrugadas cinzentas em que a lua mais parecia uma medalha fosca no céu, e não havia nenhum, nem sequer um raio de sol a recordar que a primavera estava a caminho, que em pouco tempo haveria flores.

De frente para o cimento da avenida Sumaré escondia-se nossa orquídea, as raízes comprimidas nas paredes do vaso. E se houvesse mais terra sob ela, se não fossem apenas uma pedra de ardósia e ladrilhos, quem sabe ali estivéssemos também você e eu, meu amor, sete palmos abaixo naquela terra escura, que se adubava sabe lá como, mas que estava apenas descansando, depois eu descobri, aquela terra inerte de onde eu imaginava mal brotaria uma orquídea, quanto menos as raízes de um novo amor.

Mais: A orquídea (v.1), A orquídea (v.2) e A orquídea selvagem (v.3).